sábado, 23 de janeiro de 2021

Vida Desinfetada

DESABAFO DE UMA PROFESSORA EM DIAS DE PANDEMIA

Antes de sair de casa coloco a máscara.
Azul cirúrgica ou em tecido colorido.
O acessório que nunca falta.
Saio de casa, chego ao carro e, ainda antes de o ligar, desinfeto as mãos.
Afinal, usei o elevador e as portas do prédio.
Tiro a máscara durante a viagem. Ainda quero acreditar que o interior do meu carro é um casulo seguro. 
Chego à escola e coloco novamente a máscara ajeitando-a bem no nariz.
Antes de sair respiro fundo.
Lá fora o mundo aguarda-me.
Engulo o medo e saio.
Entro ao portão. 
"Bom dia dona Nazaré!" 
Desinfeto as mãos. 
"Bom dia colega!" 
Mas quem é este colega? Todos de máscara, ainda não os consigo distinguir. Terá de ser por algum pormenor no cabelo ou no olhar.
Chego à sala de aula.
"Bom dia turma!" 
Desinfeto as mãos.
Cerca de 25 pares de olhos curiosos e traquinas desejam-me um bom dia enquanto desinfetam as mãos. 
Uma aula já não é apenas uma aula.
"Põe a máscara".
"Puxa a máscara para cima para tapar o nariz". 
"Não emprestes os materiais e se tiver mesmo de ser desinfecta-os antes e depois". 
"A máscara é para usar na cara e não no queixo". 
"Desinfeta as mãos". 
Entre tantos outros avisos. 
Mais uma aula e tudo se repete. 
São crianças, cansadas de lutar contra um inimigo invisível mas que está sempre à espreita. 
São crianças que tentam cumprir as regras e manter-se em segurança quando tudo à sua volta é inseguro. 
São crianças que querem apenas ser crianças. 
O dia termina. 
Desinfeto as mãos pela vigésima vez desde que entrei na escola. 
Uma colega vem falar comigo. 
Será que estamos a manter a distância segura? 
Será que ela tem os mesmos cuidados que eu? 
A conversa acaba e, por precaução, desinfeto as mãos novamente. 
Saio da escola. 
"Até amanhã dona Amália!" 
Volto a desinfetar as mãos, não vá ter-me esquecido de o fazer! 
Chego ao carro e tiro a máscara. 
Solto um suspiro por, finalmente, estar na segurança do meu casulo. 
Mas...não me lembro se toquei em alguma coisa nem se desinfetei as mãos. 
O melhor é desinfetar outra vez. 
Mãos e o interior do carro, que já toquei no volante e no puxador da porta! 
Tudo desinfetado e regresso a casa.
Abro a porta e espera-me o meu namorado com um sorriso.
"Olá amor. Venho já."
Vou para a casa de banho.
Lavar e desinfetar as mãos.
Tirar a máscara.
Trocar de roupa.
Olho ao espelho para a minha cara desmascarada.
As borbulhas e a pele seca instalaram-se.
A cara que nenhum colega ou auxiliar reconhece sem máscara.
Esboço um sorriso cansado.
O sorriso que os meus alunos nunca viram.
Uma lágrima teimosa acaba por se soltar.
Medo, cansaço, frustração, insegurança.
Tudo contido naquela gota salgada.
Volto para junto do meu namorado.
Beijamo-nos.
Um beijo de amor. E medo.
Será que fiz tudo bem?
Será que estamos em segurança?
Não me lembro se me desinfetei bem...
Vivemos numa incerteza diária.
Abraço-o com força.
Não quero ter medo.
Amanhã é um mais um dia.
Mas o ritual será o mesmo.
E eu só quero poder beijar e abraçar sem medo.
Quero voltar a estar com a minha família sem barreiras.
Quero conhecer os traços dos meus colegas sem preocupações.
Quero que os meus alunos vejam o meu sorriso e eu o deles.
Quero que o egoísmo e egocentrismo pare e nos deixe viver.
Egoísta.
Egocêntrico.
Inconsciente.
Tu.
Sim, tu que todos os dias negas a existência deste vírus.
Que defendes teorias negacionistas alucinadas.
Que não usas máscara quando sais.
Que não desinfetas as mãos nem as lavas de forma adequada.
Que continuas em festa como se fosses invencível.
Que te ris na cara de quem tem medo, de quem se protege.
Que ignoras as perdas dos outros.
Sim, tu.
Pára.
Ninguém quer saber se és negacionista egocêntrico ou egoísta.
Ninguém quer saber de ti.
Mas todos querem saber do mundo.
Por isso, pára e cumpre.
Todos queremos viver e não apenas sobreviver.
E eu?
Eu quero voltar à escola, sem máscara, sem excesso de desinfetante e com muitos sorrisos para dar.
Queremos voltar à vida.



1 comentário :

  1. Infelizmente vai demorar algum tempo para tudo voltar à normalidade :/

    Temos de ser fortes. Beijinhos.

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