sábado, 7 de outubro de 2017

Coincidências

"Every step you take, every move you make, I'll be watching you."

Lembro-me da primeira vez que o vi.
Sentado na esplanada, ao sol da manhã, a beber um café enquanto mexia no telemóvel.
Cabelo penteado com um pouco de gel, olha sereno, lábios definidos, a barba por aparar.
O blusão preto assentava-lhe perfeitamente nos ombros, a camisa vermelha conferia um ar sensual ao visual combinando com as calças de ganga escuras.
Atraiu a minha atenção. Mas eu não atraí a sua.
Segui o meu caminho, com a sua imagem nos meus pensamentos.
Um homem entre tantos outros mas que prendeu o meu interesse.

Fui para a estação. 4 minutos até o metro chegar.
4 minutos…pouco tempo, muito tempo. Não sei. O tempo não significa nada para mim.
Distraí-me a observar as pessoas do outro lado da plataforma.
Um homem vestido impecavelmente de fato e gravata, olhava para o relógio e para a linha enquanto se agitava nervosamente.
Uma mãe mostrava ao filho o mapa da linha, indicando-lhe o percurso que iam seguir.
Dois estudantes de mochila às costas olhavam para o telemóvel de um terceiro e riam ruidosamente.
E ele.
Lá estava ele outra vez!
Que coincidência!
Observei-o. Usava um pólo verde e umas calças castanhas, num estilo casual.
Para onde iria? Parecia despreocupado, quase relaxado, como se estivesse habituado ao percurso e à espera.
Quem serias? O homem dos meus sonhos, pensei. Ri do meu pensamento.
O seu metro chegou antes do meu. Vi-o entrar, sentar e pegar num jornal esquecido no banco.
E a desaparecer para nunca mais o encontrar.
Mais um dia se passou. Ou seriam vários? Não sei. O tempo confunde-me e, por isso, para mim já não importa.
Com aquele homem na minha mente, decidi sair à noite para o lavar da minha memória.
Fui a um bar onde nunca tinha entrado mas, ao passar pela porta, senti que era ali que devia entrar.
Ao balcão pedi um Martini, algo para começar a noite.
Olhei em redor. As mesas estavam todas ocupadas por isso mantive-me ao balcão.
A música tipo rock era do meu agrado e o bar estava bem decorado com mesas e cadeiras de madeira de um lado e, do outro, uma zona com sofás e puffs. O ambiente era descontraído e era assim que me sentia.
- Posso oferecer-lhe uma bebida?
Virei-me para a voz rouca que me fez tal oferta.
Os meus olhos encontraram uns olhos azuis profundos, numa cara emoldurada pelo cabelo preto despenteado e decorada com uns lábios finos. Gostei do que vi mas senti uma pontada de desilusão por não ser o homem que vi de manhã. Que ideia estúpida, claro que não ia ser ele!
Sorri e mostrei-lhe a minha bebida.
Ele riu e sentou-se no banco ao meu lado.
Pediu uma bebida e apresentou-se.
Falámos durante algum tempo e até o deixei pagar-me uma bebida. Aqueles olhos azuis eram fascinantes mas não eram o que eu queria. Não, o que eu queria era o olhar sereno, o cabelo penteado com gel, os lábios definidos, a barba por aparar.
Enquanto ele falava da sua banda e de como o último concerto tinha sido uma rampa de lançamento observei o bar. E vi-o. A vestir o blusão preto por cima do pólo verde, a rir com um grupo de amigos.
Que coincidência!
Despediu-se dos amigos e veio na direcção do balcão.
Senti as pernas tremer e a garganta a ficar seca.
Como é que eu não o vi antes? Tudo culpa destes olhos azuis que não descolam de mim!
Apoiou-se no balcão e pagou a conta. Enquanto esperava o troco os nossos olhares cruzaram-se.
Ele olhou para mim. E eu já estava a olhar para ele. Senti as minhas bochechas arderem por ter sido apanhada em flagrante. Sorriu para mim e eu, atrapalhada, retribuí.
Pegou nas moedas que o empregado lhe estendeu e saiu.
Ele sorriu-me…e eu deixei-o escapar, outra vez!
Senti que a noite estava arruinada e que nem aqueles olhos azuis a iriam salvar.
Pedi-lhe desculpa e despedi-me com o pretexto de estar indisposta. Ele ainda se voluntariou para me levar a casa mas recusei. Deu-me o seu número. Talvez lhe ligue, quando o outro sair dos meus pensamentos.
Saí do bar para a rua mal iluminada. A noite estava amena por isso decidi ir a pé até casa.
Durante o caminho não conseguia tirar da mente o homem que tinha visto hoje três vezes.
Perdida nestas ilusões, tropecei numa pedra solta da calçada e caí no chão frio.
Merda! Não fiz nenhuma ferida mas estava dorida.
Alguém se aproximou de mim em passo acelerado.
- Está bem? Magoou-se?
Olhei para o homem que preocupado me veio ajudar e me fazer sentir envergonhada pela minha distracção.
- Estou bem, foi só um tropeço nem me magoei.
Baixou-se ao meu lado para me ajudar a levantar e quando o olhei nos olhos reconheci-o de imediato.
O olhar sereno estava transformado num olhar preocupado.
Que coincidência!
Ajudou-me a levantar e a limpar a minha roupa suja pela queda.
Estava tão fascinada com ele que nem me apercebi de quão rápido respondi “sim” quando ele se ofereceu para me levar a casa.
No curto caminho até casa ele recordou-se que me tinha visto no bar, perguntou se o costumava frequentar e a conversa girou em torno do assunto.
À porta da minha casa convidei-o para entrar e beber algo, era o mínimo que podia fazer.
Ele recusou educadamente mas a minha persuasão levou-o a aceitar, enquanto ria e me caracterizava como teimosa com a frase “já percebi que não vai aceitar um não”.
Deixei-o na minha modesta sala e fui à cozinha buscar cervejas. Entreguei-lha já aberta, pronta a saborear.
Sentei-me no sofá ao seu lado e continuámos a falar. Estava rendida aos seus encantos que nem sequer me pretendiam encantar.
A meio da segunda cerveja os seus olhos começaram a acusar sono. Tentava manter-se acordado mas os olhos pesavam-lhe. Disse que estava cansado e que era melhor ir embora. Pediu-me um papel para escrever o seu número mas não o conseguiu acabar de escrever. Adormeceu. Caiu num sono profundo ainda segurando a caneta.
Sorri. Passei suavemente a mão pelo seu cabelo. Macio, tal como eu imaginava.
Tirei-lhe o papel da mão, enrolei-o numa bola e atirei-o para um canto. Não ia precisar disso.
Os dias passaram-se e ele continuou em minha casa. Não queria sair, não me queria deixar. Como eu o percebia! Aquilo que criámos era tão bom, tão belo.
Que coincidência!
Afinal o homem dos meus sonhos tornou-se meu!
Foram 2 anos de tanta paixão, fechados no nosso ninho de amor.
Beijávamo-nos, trocávamos carícias, fazíamos amor, prometíamos amar-nos. Entregámo-nos um ao outro.
Tenho a sua camisa vermelha vestida, aquela que usava na primeira vez em que o vi, e recordo-o e aos momentos juntos. Até ao último.
Lembro-me do nosso último dia juntos.
Estava triste, pude ver no seu olhar. Negou o meu amor. Tentou fugir do nosso abrigo de amor. Quis magoar-me.
E eu não podia deixar que nada disso acontecesse.
Por muito que o amasse naquele dia só houve uma solução.
Foi há dois dias e o quarto ainda tem o seu cheiro. Cheira a perfume misturado com suor, lágrimas e sangue agora seco.
Não percebeu que tudo o que fiz foi por ele.
Desde o dia em que o vi naquele café.
Descobri o percurso que fazia todos os dias, os sítios que frequentava, as roupas que usava, as expressões que fazia.
Tudo por amor.
Não percebeu que aquela noite no bar foi uma coincidência por amor. E que foi preciso ter coragem para, após tantas noites a saber o caminho que seguia depois de sair do bar, arranjar uma forma de reparar em mim. 

E resultou. Veio salvar-me e eu quis retribuir. E retribuí com o meu amor durante estes anos em casa. Mas ele não percebeu nada disto.
2 anos, 2 meses ou 2 dias? Não sei…o tempo para mim é uma nuvem difusa desde que o perdi. Não consigo elaborar uma linha temporal coerente.
Mas não importa, tenho as nossas memórias.
Lembro-me da última vez quem o vi.
Foi neste quarto, o corpo na cama já sem vida, o sangue a pingar o chão de madeira.
A faca que usei deixei-a na sua mão. Posso ter sido eu a agir mas, afinal, foi ele que decidiu este fim.
Era ideal para mim e estragou tudo.
Agora, observo o quarto onde ele viveu nos últimos anos. Escuro, sujo, desarrumado.
Não consigo evitar esboçar um sorriso quando olho a parede onde rabiscou os dias que ali passou. 

Tonto. 
Para quê contar dias em vez de os aproveitar? 
Se não se tivesse revoltado contra mim, aquelas quatro paredes nunca chegariam para assinalar os dias que ali estaria comigo.
Não sei se os outros se lembram da última vez que o viram.
Mas, de certeza, irão recordar-se para sempre do dia em que o voltaram a ver.
“Notícia de última hora! Ao início da manhã foi encontrado um cadáver sentado na esplanada de um café. A vítima está identificada como um homem desaparecido há cerca de 2 anos. O corpo está despido e tem escrito no peito, com o seu próprio sangue, “MEU”.”
É altura de recomeçar. Tenho de me recompor, limpar aquele espaço, organizar tudo. E voltar a sair. Sim, porque se ele não era o homem dos meus sonhos então esse ainda anda por aí. 

E eu tenho de o encontrar!

homem e mulher na rua

15 comentários :

  1. Wow, este texto está qualquer coisa de espetacular!

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  2. Adorei o texto, muito bem escrito! parabéns :D

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  3. No inicio parecia uma bela e tipica história de amor, mas depois tornou-se em qualquer coisa. Aqueles segundos olhos azuis salvaram-se deste desfecho :)

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    1. Será que se escaparam? Se eu não tiver preguiça ainda descobrimos...olha que ela tem o número dele ;)

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  4. Adorei! Parabéns por conseguires que o leitor faça parte de cada texto que escreves =)

    Beijinhos Helena!

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    1. Obrigada! A intenção é mesmo essa. Quero que o leitor seja parte deste mundo ;)

      Beijinhos

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  5. Que medo! Uma pessoa a deliciar-se com o romance e depois leva com um balde de água fria e essa última frase mata-me, deu-me vontade de rir, próxima vítima. :P

    MRS. MARGOT

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    1. Agora vamos ver se a minha preguiça não mata a próxima vítima dela ahahah
      Obrigada por gostares! :D

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  6. Olá Diana! :D
    Obrigada! Fico feliz por teres gostado!
    Já passei no teu e deixei comentário ;)
    Beijinhos

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