sábado, 14 de outubro de 2017

Fuga


"I know we'll make it anywhere away from here. And we'll run for our lives."

Saio a correr pelo enorme portão verde aberto à espera que por ele entrem e não que saiam.
Muito menos eu. Ainda menos a correr.
Seguro de lado o vestido, mais para não cair do que para não o sujar.
Ouço as vozes dentro de casa chamarem-me, os cães ladrarem em alvoroço e o som de portas a baterem.
Já do lado de fora encosto-me ao muro de pedra cinzenta que as heras tingem de um verde vivo.
Preciso de me afastar dali rapidamente.
Sempre junto ao muro, sigo em direção ao campo.
É arriscado, alguém pode ver-me ou ouvir o barulho mas prefiro arriscar.
Chego lá e vejo três belos cavalos. Dois castanhos e um preto, calmos, de crinas a balançarem ao sabor da leve brisa.
Ainda junto ao moro tento atrair a sua atenção, chamando-os.
Sou ignorada. As vozes continuam a chamar-me e sinto que irei ser apanhada.
Avanço em direção aos cavalos e aproximo-me do de pelo preto brilhante.
Toco-lhe enquanto lhe falo, acaricio-lhe o focinho, deixo que ele sinta que pode confiar em mim. E em troca ele deixa-me montá-lo.
Subo para cima do cavalo, ajeito o vestido e parto pelo campo fora.
Entro numa zona de floresta, seguindo por um caminho estreito que me embrenha cada vez mais na vegetação verde.
As vozes ficaram distantes, já estou longe o suficiente e posso permitir que o cavalo abrande.
Seguimos a passo calmo por entre árvores frondosas e acaricio a crina do cavalo.
Reparo no meu braço que está sujo de terra e de algum verdete. Olho melhor e vejo que o outro braço e as pernas estão das mesmas cores.
Não posso aparecer assim!
Conheço bem a zona, desde criança que percorro os trilhos da floresta, e sei como resolver a situação.
Guio o cavalo para fora do trilho em que seguíamos e levo-o por entre troncos grossos e ramagens verdes.
Cerca de 10 minutos depois chegamos a uma zona onde corre um ribeiro de água límpida, que forma uma pequena lagoa azulada criada por uma cascata de pequenas dimensões.
Desmonto o cavalo e encaminho-o para junto do ribeiro. Cansado bebe água.
Olho em redor. O local é recôndito, não há ninguém nas proximidades, apenas se ouve o som da água e dos pássaros a chilrear.
Quem me procura não se vai lembrar de vir até aqui. E se se lembrarem ainda vão demorar a cá chegar e já terei partido.
Dispo o vestido e deixo-o cair aos meus pés. Com cuidado pego nele e observo-o. Não está sujo, apenas na zona da bainha mas nada que se note. Coloco em cima de uma pedra, onde não possa ficar sujo ou estragar-se.
Dispo a roupa interior e deixo-a junto do vestido.
Molho os pés na pequena lagoa. A água está fresca mas de um modo revigorante.
Lentamente entro na água, vou molhando as pernas, a barriga, os braços e retirando a terra e o verde da erva que tinge a minha pele.
A lagoa é pouco profunda e a água fica-me abaixo da cintura.
Baixo-me, molhando todo o corpo.
Inclino-me para trás e molho o cabelo.
A água fresca arrepia-me a pele e sinto-me refrescada.
Deixo o meu corpo flutuar à tona de água enquanto me perco em pensamentos.
Fugi de casa. Fugi da minha família. Fugi da vida que tinha.
E porquê?
Para recomeçar. Recomeçar onde aceitem as minhas escolhas, onde possa tomar as decisões da minha vida, onde possa ser eu.
Foi extremo mas necessário. Já estava tudo planeado há quatro meses. Não ia desistir.
Hoje começa a minha liberdade.
O relinchar do cavalo despertou-me e decidi que estava na altura de continuar a minha jornada.
Saí de água e escorri o cabelo. Não tinha onde enxugar o corpo molhado. Mas a solução estava mesmo ao meu lado.
Abracei o cavalo e deixei que o seu pelo negro limpasse as delicadas gotas que cobriam o meu corpo nu. O calor do seu corpo era reconfortante e senti-me protegida, segura.
Já seca voltei a vestir a roupa interior e o grande vestido que tinha escolhido trazer.
O cabelo teria de secar ao calor do sol e ao sabor do vento.
Montei o meu cavalo alado e partimos rumo ao meu futuro.
Cavalgamos sempre junto ao ribeiro, em direção ao rio onde desaguava.
O caminho era curto e eu conhecia-o bem. Já o tinha percorrido dezenas de vezes nestes últimos meses.
Já junto ao rio avistei ao longe o meu destino.
Sorri e ordenei ao cavalo que cavalgasse mais rápido.
O vento batia-me na face e soprava os meus cabelos.
Um sorriso gigante desenhava-se no meu rosto à medida que nos aproximávamos.
Parei o cavalo junto de uma capela situada à borda do rio.
A capela era antiga, quase uma ruína e passava despercebida aos mais desatentos.
Era utilizada para os pescadores fazerem as suas preces e para missas e celebrações ocasionais.
Hoje era uma dessas ocasiões.
Desci do cavalo e encaminhei-o comigo até junto da entrada da capela.
Acariciei-lhe o focinho e agradeci-lhe ter sido meu companheiro de fuga.
Ajeitei o longo vestido branco e o cabelo que a natureza se tinha encarregue de pentear.
Sentia-me uma princesa, dona do meu próprio conto de fadas que eu começara a escrever hoje.
Entrei pela capela.
Vi o padre sorrir-me ao centro do altar e incentivar-me a entrar agitando a mão.
E vi-o.
Vi o homem por quem me apaixonava a cada dia mais.
O homem que roubara o meu coração, que me fizera cometer esta loucura, que me permitia ser livre, que me deixava ser eu.
Vi o amor da minha vida.
E tudo fez sentido.
Avancei determinada até ele.
Olhámo-nos nos olhos, um olhar que perdurará na eternidade.
E sorrimos.
E eu soube que tudo estava certo.
Foi por amor.
É amor.

“Estamos hoje reunidos para celebrar o matrimónio entre…”

noiva a montar cavalo

17 comentários :

  1. Tão bonito! É tão bom ler coisas assim logo pela manhã :) Um beijinho!
    https://healthyfoodandme.wordpress.com/

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ainda bem que gostaste Sara!
      Um pouco de romance pela manhã dá sempre alegria ;)
      Beijinho

      Eliminar
  2. Simplesmente magnífico. Parabéns Helena adorei :)

    ResponderEliminar
  3. Obrigada Monyque! Ainda bem que gostaste!
    Vou passar pelo teu blog ;)

    ResponderEliminar
  4. Não estava nada à espera deste final, adorei! Estava mesmo muito lindo :D

    Beijinhos,
    Dezassete | 5 PENTEADOS SUPER FÁCEIS

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada! Fico muito contente por teres gostado e por te ter conseguido surpreender com o final :D

      Beijinhos

      Eliminar
  5. Helena, tens um jeito tremendo para escrever! Adorei a forma como descreveste a forma como o cavalo "aquece" a pessoa.

    Continua! :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada Rui! Sabe tão bem ler essas palavras! Espero continuar a fazer um bom trabalho e a proporcionar bons momentos de leitura :)

      Eliminar
  6. Tu escreves tão bem!! Só paro quando chego ao final dos teus textos...fico vidrada!! Parabéns querida <3

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada Vanessa! Que comentário tão bom de se ler!
      Fiquei muito feliz por teres gostado! :D
      Beijinho

      Eliminar
  7. Ai opá que lindo! Fiquei vidrada com o texto!

    ResponderEliminar